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Houve um tempo em que a fome e a miséria se alastravam e os mais abastados sempre diziam que tudo aquilo era desígnio de Deus. Os meninos e as meninas, com as pernas em cambitos e os buchos esticados padeciam de desnutrição, mas os senhores de barriga cheia diziam que tudo aquilo era como Deus queria. Apareceram então senhoras missionárias, ali naquele chão e, de tão humanas, eram chamadas de irmãs; falavam de um jeito engraçado, tentando abrasileirar seus sotaques e sorrisos estrangeiros. Faziam multimistura com casca de ovo e até plantas para salvar as crianças, ensinavam às mulheres formas alternativas de sobrevivência, falavam de organização social, da importância da educação, de trabalho coletivo em cooperativas e não me lembro de culparem Deus pelas misérias perpetuadas pelos poderosos desde que as caravelas aqui aportaram, cheinhas de padres, embora não fosse junho. Se aqui estivessem hoje, elas já teriam sido apedrejadas, queimadas vivas; Comunistas!!
Nesse tempo, era mais fácil explorar/dominar os corpos, a fé, a palavra, as vontades e até a alma das pessoas, afinal era só inculcar o temor a Deus e garantir um punhado de farinha e/ou qualquer moeda para que as pessoas se rendessem, tendo sua dignidade estraçalhada, afinal, a fome não espera rebelião. Foi assim que os mais abastados perpetuaram seus poderes, roubando a infância e vida toda das pessoas, enquanto seus filhos eram mandados à capital para estudar e, quem sabe, tornarem-se os políticos de carteirinha que logo dominariam os filhos dos explorados, numa perpetuação cruel da subjugação. Havia quem fugisse do seu chão, buscando a utópica "vida melhor", a dignidade roubada por aqueles que afirmavam ser "como da família", lá em outro estado e região. Estrangeiros de si mesmos, extropiados de sua própria história, cultura e linguagem. Lá, nas terras do Sul e Sudeste, trabalhariam duro para, repetidamente, terem sua dignidade aviltada por gerações de ignorantes que não sabem sequer distinguir norte de nordeste, e julgam uma região plural e produtiva pelos discursos hegemônicos enviesados e pelas imagens que viram nos livros didáticos esteriotipados, produzidos pelos donos da palavra (branca e elitista).
É esse tempo que eles querem de volta. Tempo de silêncio e corpos moldados, amarrados no cabresto, imobilizados pelas pêas da fome, da injúria, da violência, do racismo, da homofobia, da intolerância, da xenofobia. Tempo de culpar a Deus pelos desmandos de si e atribuir a Ele a perenização da fome, da miséria e da multiplicação do mal. Esse deus que eles inventaram para garantir seus caprichos tiranos e o horror de seus discursos e atos temerários.
Porém, enquanto houver memória e palavra para revivê-la e sonho para transformá-la e grito para não calar e força para caminhar e esperança para não tombar e fé para não desanimar... enquanto houver um sopro de pássaro cantando nos ouvidos da esperança, eu vou sonhar!! Sonhar e construir uma sociedade mais justa, mais digna, mais colorida, mais feliz, não para mim, mas para os filhos e as filhas dos silenciados, dos chicoteados, dos anulados, dos destituídos de si mesmo!! Sonhar e lutar pela reconstrução de um tempo passado, não tão distante, onde a fé era experiência particular e o amor ao próximo lei universal. Eles querem o meu/ o nosso ódio, mas não terão!!
Pók Ribeiro
poeta escrevendo com outras mulheres, professora de escola pública, nordestina, doutoranda em Letras: linguagens e representações por uma universidade pública