segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Eu vou- você vai- passarinhar!

Imagem autoral
                 

           Houve um tempo em que a fome e a miséria se alastravam e os mais abastados sempre diziam que tudo aquilo era desígnio de Deus. Os meninos e as meninas, com as pernas em cambitos e os buchos esticados padeciam de desnutrição, mas os senhores de barriga cheia diziam que tudo aquilo era como Deus queria. Apareceram então senhoras missionárias, ali naquele chão e, de tão humanas, eram chamadas de irmãs; falavam de um jeito engraçado, tentando abrasileirar seus sotaques  e sorrisos estrangeiros. Faziam multimistura com casca de ovo e até plantas para salvar as crianças, ensinavam às mulheres formas alternativas de sobrevivência, falavam de organização social, da importância da educação, de trabalho coletivo em cooperativas e não me lembro de culparem Deus pelas misérias perpetuadas pelos poderosos desde que as caravelas aqui aportaram, cheinhas de padres, embora não fosse junho. Se aqui estivessem hoje, elas já teriam sido apedrejadas, queimadas vivas; Comunistas!!

                Nesse tempo, era mais fácil explorar/dominar os corpos, a fé, a palavra, as vontades e até a alma das pessoas, afinal era só inculcar o temor a Deus e garantir um punhado de farinha e/ou qualquer moeda para que as pessoas se rendessem, tendo sua dignidade estraçalhada,  afinal, a fome não espera rebelião. Foi assim que os mais abastados perpetuaram seus poderes, roubando a infância e vida toda das pessoas, enquanto seus filhos eram mandados à capital para estudar e, quem sabe, tornarem-se os políticos de carteirinha que logo dominariam os filhos dos explorados, numa perpetuação cruel da subjugação. Havia quem fugisse do seu chão, buscando a utópica "vida melhor", a dignidade roubada por aqueles que afirmavam ser "como da família", lá em outro estado e região. Estrangeiros de si mesmos, extropiados de sua própria história, cultura e linguagem. Lá, nas terras do Sul e Sudeste, trabalhariam duro para, repetidamente, terem sua dignidade aviltada por gerações de ignorantes que não sabem sequer distinguir norte de nordeste, e julgam uma região plural e produtiva pelos discursos hegemônicos enviesados e pelas imagens que viram nos livros didáticos esteriotipados, produzidos pelos donos da palavra (branca e elitista).

              É esse tempo que eles querem de volta. Tempo de silêncio e corpos moldados, amarrados no cabresto, imobilizados pelas pêas da fome, da injúria, da violência, do racismo, da homofobia, da intolerância, da xenofobia. Tempo de culpar a Deus pelos desmandos de si e atribuir a Ele a perenização da fome, da miséria e da multiplicação do mal. Esse deus que eles inventaram para garantir seus caprichos tiranos e o horror de seus discursos e atos temerários.

                Porém, enquanto houver memória e palavra para revivê-la e sonho para transformá-la e grito para não calar e força para caminhar e esperança para não tombar e fé para não desanimar... enquanto houver um sopro de pássaro cantando nos ouvidos da esperança, eu vou sonhar!! Sonhar e construir uma sociedade mais justa, mais digna, mais colorida, mais feliz, não para mim, mas para os filhos e as filhas dos silenciados, dos chicoteados, dos anulados, dos destituídos de si mesmo!! Sonhar e lutar pela reconstrução de um tempo passado, não tão distante, onde a fé era experiência particular e o amor ao próximo lei universal. Eles querem o meu/ o nosso ódio, mas não terão!!

Pók Ribeiro
poeta escrevendo com outras mulheres, professora de escola pública, nordestina, doutoranda em Letras: linguagens e representações por uma universidade pública


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Os dedos de Maria e Úmidas

 

           Eis que 2022 me trouxe a publicação de duas obras importantíssimas para esse meu processo contínuo de vivências com a palavra. Ainda no primeiro semestre, foi lançado o Úmidas, pela Margem Edições; um livro carregado de de força e significância, sobretudo, por tratar-se de uma obra coletiva feita por três mulheres poetas, caatingueiras, arteiras e desobedientes: Ádila Madança, SertãoSol e eu.
           Úmidas traz nas palavras os riachos dos nossos gozos e labutas.

          Já agora, no segundo semestre, tive a alegria de lançar a pré-venda do livro Os dedos de Maria pela Editora Folheando e, muito embora seja escrito por mim, o livro traz a voz, o cheiro, a força e o grito de tantas outras mulheres, marias de luta e versos. São elas em mim e nelas sou.

            Se você vem me acompanhando aqui pelo blog, também pode adquirir as obras pelo site das editoras, é só clicar nos links abaixo e se deleitar com a poesia:
                 

Os dedos de Maria

Úmidas

                      




Pók Ribeiro

domingo, 21 de novembro de 2021

Nossa cara de ENEM na vida!



     Desde que foi criado, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) passou por transformações significativas, sempre buscando maior democratização do ensino superior e inclusão de mais jovens nas Universidades. É evidente que algumas polêmicas permearam o início do exame, principalmente porque livre acesso ao ensino superior público ainda era algo distante e altamente restrito aos donos de tudo, mas também pelo valor da taxa de inscrição e pelas dificuldades inerentes a qualquer implementação que vise transformações. Neste primeiro momento, o ENEM ainda parecia algo bem distante e complexo para estudantes que, como eu, vinham da escola pública de cidades interioranas do Sertão nordestino. Eu ainda não tinha essa percepção clara das várias camadas de exclusão e invisibilidade, mas já sentia um incômodo enorme dessa concepção elitista e cristã de que Deus abençoava os filhos dos ricos com aprovações nas universidades das capitais, mas aos filhos e filhas dos pobres, não.

      Já mais consolidado, em 2001, o MEC passou a conceder isenção da taxa de inscrição a estudantes que atendessem alguns pré-requisitos básicos de renda e histórico escolar em rede pública, o que garantiu maior participação dos jovens de baixa renda, visto que o valor alto da inscrição era um dos impedimentos iniciais. Garantir isenção foi mais uma abertura para aqueles/as que seguiam silenciados e excluídos dos seus direitos mais fundamentais, entre eles o garantido no Art. 205 da Constituição Federal:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.


        Esse fora um ganho importante, mas ainda faltava muito, pois nem todas as Universidades haviam aderido ao exame como forma de entrada de seus estudantes e, principalmente, porque se escancarava a desiguldade territorial nesse país. Grandes cidades do Norte e Nordeste não tinham Faculdades,  Universidades, evidenciando a negligência dos governos com o povo nortista e nordestino, desde a República do Café com Leite. Desse modo, mesmo que o/a estudante conseguisse aprovação, ele precisaria de uma rede de apoio bastante efetiva para mudar-se para a capital, o que nem sempre ocorria. Quantos amigos, conhecidos não abandonaram seus sonhos por não terem onde morar e como se alimentar na capital para que pudesse estudar? 

     Depois de algumas outras evoluções, como a criação do Prouni em 2004, que garantia a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais, em instituições privadas, aos participantes, o ENEM ganha não só um novo formato, em 2009, mas também a ampliação de unidades de ensino superior, inclusive os Institutos Federais que se espalharam em espaços até então desassistidos, garantindo maior acessibilidade e inclusão efetiva desses jovens que não precisariam mais abandonar suas raízes, seu povo, sua cultura para conseguir uma formação superior, além da criação do FIES em 2010. Não podemos omitir que várias falhas graves ocorreram nesse percurso, a exemplo do vazamento  e cancelamento de provas, como ocorrido em 2009, porém nada tão obscuro e entristecedor como o que estamos a presenciar neste ano de 2021.

     Mesmo com todos os impedimentos, exclusões acentuadas com a pandemia, a baixa participação, sobretudo de estudantes de baixa renda desassistidos e ignorados pelo sistema, inclusive das redes estaduais que só se preocupam com dados, com números de inscritos, mas não criam nenhuma estratégia prática e efetiva para garantir que esses estudantes cheguem aos locais de prova em segurança, somadas à ingerência desse (des)governo, o ENEM de 2020 não trouxe tanta indignação como a edição deste ano, marcada pelo desligamento de servidores do INEP e pelas denúncias de interferências na escolha das questões das provas.

     Não bastasse toda a tensão inerente ao momento, as dificuldades de aprendizagem do ensino remoto e híbrido, as dificuldades econômicas que levaram os estudantes a se dedicarem ao trabalho para garantirem a sua sobrevivência e de suas famílias, em decorrência da crise econômica que nos engole e atinge mais em cheio jovens estudantes da escola pública, o (des)presidente afirma que o ENEM teria "a cara do governo". Nada mais feio, tosco, repugnante, do que sua cara, seus discursos e ações, mas eu me questiono, o que seria uma prova com a cara do governo?

    Teria a prova narrativas de fome, miséria, diários de um genocídio em curso, retratos de desmandos, campanhas publicitárias de negacionismo e preconceito? Essa prova traria análises da área da terra plana, o volume do caos, os decibéis das Fake News, os índices crescentes da fome? A mobilidade social da classe média/baixa para a linha da extrema pobreza? Traria a prova, cartas de garimpeiros e agropecuaristas dizimadores do povo indígena, narrando os feitos das suas incursões na Amazônia úmida que não cede ao fogo? Ou quem sabe, teria estatísticas e históricos de atletas que não se renderam à gripezinha que já matou mais de 613 mil pessoas e deixou cerca de 194.200 órfãos, crianças e adolescentes que perderam os pais ou avós que lhes criavam. (?)

   Uma prova com a cara desse (des)governo assusta, censura, persegue, mata... E o ENEM, desde o seu nascedouro, é um exame que acolhe, inclui, abre caminhos de possibilidades, garantindo a jovens pobres, periféricos, das áreas rurais, outras perspectivas de vida para além dos determinismos e, por isso, não deve e nem pode ter a cara de tiranos.  De cá, fico torcendo para que minhas (ex) alunas e alunos consigam um bom resultado e façam uma nova história em que suas vozes, caras e lutas sejam valorizadas e respeitadas. Também torço para que esses tempos sombrios se findem e a gente possa, enfim, respirar com mais liberdade e possibilidades de transformação, do litoral ao Sertão, do chão de barro ao cimento suspenso, porque nosso sonho não se cala!

      Demos ao Brasil a nossa cara plural, diversa e de luta!!!


   As fotos que integram esse meu desabafo foram feitas por alunas minhas (Júlia do Vale e Edilene Morais), enquanto esperavam os portões abrir, neste 1º dia de prova. É a elas e todas/todos as/os outras/os que dedico a minha luta por uma Educação Libertadora!!!


Pók Ribeiro
professora, poeta, gente que sente (e diz) - muito!









terça-feira, 20 de abril de 2021

Foto pessoal exclusiva para este texto

 
Eu não quero morrer!

Eis o prólogo de todos os meus dias, ditos e sentidos, a partir deste instante que me escapa!


Quando afirmo esse  meu desejo, não nego a morte, este mistério para o qual caminhamos, desde que "uma molécula disse sim a outra molécula"(1), " o único mal irremediável" (2), mas torno dito ao mundo  que não quero morrer no cumprimento do meu ofício, aquilo que escolhi como meio de mudança social,  de construção coletiva de caminhos possíveis, de transformação de vidas. Não quero morrrer, enquanto busco a liberdade e a plenitude das vidas.

 Eu não quero morrer!

E , se não quero a morte que me/nos espera no caminho da escola, na sala de aula, nos demais objetos e espaços escolares compartilhados, é que também quero vivos os meus colegas, meus alunos e seus familiares. Se nos queremos vivos, a quem interessa nossa morte? Quem resguarda nossas vidas, enquanto lidamos com outras vidas? Quem decide sobre nosso respirar?


 Eu não quero morrer!

Não! Não caminho contra o ciclo natural dos dias, não desacato os planos do Universo sobre meus dias, mas não admito que pessoas dotadas de poder e desumanidade decidam sobre vida e morte. Não tenho vocação, nem formação, nem roupa para a martirização. Também não me apetece ser homenageada em notas de pesar, postagens póstumas nas redes sociais... Interesso-me pela vida, a minha e a daqueles com os quais compartilho vida, afeto, aprendizado, poesia, respeito, espiritualidade e sarcasmo. Sim, sarcasmo para sobreviver aos tolos poderosos.


 Eu não quero morrer!

Eu quero a vida que salta de um poema ou de um conto de Conceição Evaristo; a vida que pulsa da primeira dissertação-argumentativa feita por uma aluna que nunca tinha ouvido falar em "texto em prosa"; a vida sem modelos que transborda de uma reação "eu não entendi não!"; eu quero a vida que ri num romance de Machado de Assis, a vida vivente saltitante da linguagem, suas variações, suas figurações... a vida sem papas que arrelia " aí dentoo! ";  eu desejo a vida que grita no poema de Gilka Machado, que diz sem arrodeios no verso de Luísa Romão;  eu quero a vida que floresce na poesia de mulheres do Semiárido e na chuva que lava meu telhado; eu quero a vida que se espreguiça no aluno que cochila sobre o caderno, depois de um dia inteiro de trabalho, sob o sol, no cultivo da uva que vai pra sua mesa da Jacaúna e pro vinho  que você bebe, celebrando sua vida protegida, enquanto decide pela minha morte e a desse aluno-trabalhador-gente que você desconhece.


 Eu não quero morrer!

Se eu não quero morrer, por que você quer me matar, me obrigando a dar aulas presenciais, sem vacinação, sem respeito, sem consideração ? 

Se é tudo pelo direito fundamental à Educação e Educação se faz com pessoas vivas, histórias vivas, contextos vivos, saberes vivos, dúvidas vivas, sonhos vivos, vozes vivas, espaços vivos, porque não importa se morreremos??


 Eu não quero morrer!
 Eu não aceito que o Estado me mate!
 
 Eis o posfácio de todos os meus dias, ditos e sentidos, a partir deste instante que me escapa!


Pók Ribeiro

(1)1. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998
(2) SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2008. (Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros).




sexta-feira, 10 de julho de 2020

Carta às luas minguantes de Julho



Arquivo pessoal
Passados tantos relógios, sem que eu me interessasse por suas horas e reclames; sem que me pesasse qualquer receio de marcas ou desespero por guardados, eu ainda entrego-me à contemplação da chama que vacila ante meus olhos, nesse ritual de recomeço dos ciclos que escolhi para ouvir meus monstros antigos e os chegados. Passaram-se tantos, desses papéis desocupados que contam dias, mas eu ainda sigo crendo na fumaça perfumada que adorna esse meu corpo, guardador dessa minha alma sem datas.


E mesmo distante daquele rosto menino que sorri, assim meio de lado, nas fotografias coloridas - quase sépia - 10 X 10, eu ainda lembro que as balas da festa nunca são para mim e tudo bem, porque o que me adoça é esse silêncio madrugadeiro das ruas e a vela tremelicando na porta lateral, onde o gato vigia meus poemas pendurados no varal.

E nesse tempo, que nunca conto, porém mais uma vez se achega para outro giro sobre meu Sol, sei que é preciso, ainda mais, ser como a Lua  a refazer-se em seus ciclos de (re)nascimento constante,  seja alongando cabelos, revirando marés ou parindo os novos seres que habitarão esse chão. As chamas das velas que já me acompanharam nessa e noutras portas, sempre abertas, ensinaram-me sobre teimas sem alaridos e sementes que germinam mesmo entre a sequidão e morbidez das paredes. Eu ainda aprendo a arder e clarear, antes a mim e mais tarde, a estrada que se abre. Eu ainda teimo, tão logo acorde e o caminhar se faça.

Contemplando a lua, que me guarda desde que minha mãe ordenou, aprendo mais sobre nuvens passageiras, atordoadas na ilusão de luzir-se, arrastadas pelo vento que não lhe escuta...Elas vão, tomando outras formas, perdendo fiapos de si, atendendo os (des)mandos de um vento que se joga para toda e nenhuma direção, enquanto a lua retoma seu brilho, alvejando os sonhos e alimentando as deusas que dançam comigo.

É nessa ciranda de ditos que saltam dos versos e das vozes do passado, reverberando nos cheiros, nas cores das paredes e no refúgio dos achados da memória, que me vejo,  fitando o horizonte e essa esperança que sempre parece nascer à leste. Contemplo a lua, subindo em pausas, desejando que também venham os ETs, resgatar essa criança que ainda brinca e saltita em alguma parte perfumada de mim. resistindo aos ciclos que teimam em fechar e acordar dores lombares.

Eu ainda sigo, ignorando as vestes e os detectores de arranhões e cabelos brancos.
Ainda voo.
Só a lua verá!


Pók Ribeiro






sexta-feira, 29 de maio de 2020

Carta ao silêncio

Arquivo pessoal



Sr. Silêncio,
Escrevo para te certificar que não estou bem. Não estou bem, mesmo, e não quero que me digas nada. Faz-te! Nada há de mudar no vão onde moras.

Não estou bem e escrevo. Escrevo tanto para dizer, como para viver, ou sei lá se vivo. Escrevo para atestar que me vive algo além de náusea, a insônia e dor instaladas há meses nos espaços ocos desse corpo e espírito.

Enquanto escrevo, cada palavra absolvida,  desse meu calabouço de pensamentos atropelados, é como uma alma resgatada lá do umbral. É uma célula que revive e suspira. Escrevo como quem salva sentenciados perpétuos. Só ainda não sei salvar o que sobra de mim, de nós, pobres julgados das galés do assombro, da pérpetua angústia desse (des)governo. 

Queria escrever aos que falam festivos e esperançosos. Aos que celebram a palavra e seu doce sopro de ressurreição. Aos que dedicam-se a beber buscando o antídoto ou o impedimento constitucional, no fundo do copo.  Queria escrever para a cura ou à ela, se ainda soubesse de amanhãs reluzidos.

Escrevo para respirar, enquanto não há vacina pro vírus nem pra lágrima. 

Escrevo, enquanto a calçada é calabouço e o jornal me estrangula. Escrevo como quem voa sem planos de retorno.

Escrevo.

Não me responda.  Faz-te!


Pók Ribeiro


quinta-feira, 14 de maio de 2020

Carta de um resguardado

Registro Pessoal


No varal estendido entre a cabeça atordoada e a nuvem pesada, em tons de chumbo, fé e medos balançam ao vento das plurinformações.  O medo se aperta no fio para caber a inconsequência crescente. A nuvem passa.

Nas ruas, o invisível passeia livre e feliz pelos espaços que tem conquistado, pelos corpos em que tem se hospedado e as viagens que tem feito sem pagar passagem nem taxa de embarque, enquanto a multidão o desafia, protegida pela ignorância e pela ideia de superioridade às vidas que se perdem. Vidas dos mais vulneráveis.

As pessoas correm, pedalam, tomam mais um gole, orgulhosas de seu vigor de atleta e de terem furado o isolamento, burlado as recomendações da OMS e autoridades locais. Elas ostentam, às gargalhadas, o estandarte da sua idiotia perversa e mortal. Enquanto isso, os que precisam salvar vidas e todos os outros, nós, que nos esforçamos para convivermos em paz, com as conflituosas vozes de nossa cabeça, os tantos eus tão enjoadinhos e os eus dos outros que a gente, também, acaba enjoando; nós e esse senso de coletividade que ainda alimentamos todas as manhãs, vamos nos sentindo mais bobos, porém sem culpas ou remorsos.

Ademais, os sistemas sentem-se mais corpulentos para oprimir, excluir, afinal, amofinado e picado pelo medo o povo é mais facilmente tangido. É assim que os mandarins da educação determinam que professores/as devem produzir aulas e materiais on-line, para seus alunos/as assistirem e realizarem, lá de suas casas, naqueles espaços desconhecidos, mesmo que nelas não se tenha acesso à internet, computador, celular. Mesmo que na casa tudo falte, até alimento. Afinal, mais importante é alimentar o tal sistema de atividades, mesmo que elas nunca sejam visualizadas; determinam eles, em sintagmas preposicionais repletos de elipses e oximoros, que nunca serão lidos ou interpretados de forma socialmente crítica. Enquanto isso, professores reproduzem comandos tal qual a orquestra do Titanic, tocando para as minorias que têm poder e colete de sobrevivência, visando estampar os posts da “Maratona de Se aparecer”; outros, seguram, angustiados, os instrumentos que nunca tocarão, pois sabem que significativa parte do público teima para sobreviver lá no porão. São os excluídos que nada escutam. Ninguém lhes escuta, igualmente.

Enquanto isso, a Arte, Senhora já tão castigada pelo conservadorismo espumando de raiva, segue sendo o antídoto necessário a luzir ante a escuridão do egocentrismo e das opressões que se proliferam junto ao vírus. E a Arte vai abrindo as janelas para o vento da esperança e arrebentando as tramelas da alma para o sentir mais puro. Quando a distância se faz urgente e solidão e pavor se alojam na mente, é a música que espanta o temor; é a Poesia que denga e acalanta os sentidos; é o teatro, o movimento dos corpos, o encontro de imagem, som e enredo que saltam das telas e vão ocupar a sala vazia, o quarto em resguardo.

Nas Universidades e laboratórios tantos, todos/as aqueles/as perseguidos/as pelo obscurantismo que governa – estupidamente – o país, dedicam-se obstinados/as à busca de medicações, à criação de equipamentos que possam abrandar os males causados por esse invisível que censura abraços e beijos e vai botando longe dos nossos olhos, os olhos que amamos perto.

O Universo tem nos falado, tão logo o cordão umbilical se rompe, mas nossas limitações mais elementares vão confundindo as vozes e, chega um tempo em que curvados, vemos apenas o reflexo adornado de nossa existência e aquelas verdades absolutas de tudo que não é, mas pensamos ser. Um tanto de retóricas guardadas em arquivos inúteis que dizem mais sobre nossas fraquezas que sobre eloquências. 

É o tempo de depuração que impera. É a voz maior do Universo que nos ordena o cantinho do pensamento. É a mãe terra arrependida, talvez, de não nos ter abortado a tempo de salvar-se. Sejamos pois, sementes reaproveitadas e conscientes das grandezas mais apropriadas para a Poesia: o amor- próximo e distante-, o silêncio regenerador, a liberdade intangível de sermos luz e o dever irrenunciável de cuidarmos uns dos outros, em comunhão com a grande mãe que tão logo devorará nossa matéria. 

Voemos!

Pók Ribeiro

                                             (escrito entre 04/04 e 27/04/2020)


quarta-feira, 6 de maio de 2020

Carta aos insensíveis (Ou manifesto de apoio aos que sentem demais)

Arquivo pessoal


Carta aos insensíveis (Ou manifesto de apoio aos que sentem demais),


Começarei de modo bem direto, antes que você abandone esta leitura para seguir na construção do simulacro de sucesso que você noticia: Não está nada bem!! Não!! Nada está, nem estamos bem e não nos é digno fingir!

De início, remeto esta carta aos fazedores ou fiscalizadores do ensino nesse país, e já gostaria de trazer-lhes uma reflexão que aqui não se fará retórica, pois espero que as possibilidades de respostas se (re)construam na sua consciência política e profissional, em modo contínuo:

O que é Educação?

Concebê-la como direito fundamental que deve ser garantido a todo cidadão brasileiro ou como mera prática didática é o que, aqui, distinguirá não só os interlocutores desta missiva, como deixará visível o que de fato é prioridade nesse momento de incertezas, angústias e calamidade de toda sorte. E devo reiterar: Não está nada bem!! Não!!

Não sei se lhes interessa saber, mas a mim muito conta dizer, como professora da Educação Básica, da rede pública, eu estou angustiada, frustrada, descrente, profissionalmente e emocionalmente destruída. E sabe por quê?
Eis alguns dos principais motivos:

·       Porque tenho visto e ouvido, sem muito poder fazer além de me opor e protestar, a imposição de um discurso excludente, opressor, cruel que afirma “A educação não pode parar”. Educação para quem?! Repete-se a mesma prática excludente e perversa do Governo Federal, em manter o prazo do ENEM, ignorando-se completamente as tantas desigualdades e o pavor agigantados pela pandemia. ENEM para quem?!

·       Porque tenho presenciado uma competição insana entre instituições de ensino para atestar quem consegue enviar o maior número de atividades on-lines, vídeoaulas e outros produtos digitais, no menor espaço de tempo, para não importa quantos alunos e se eles acessarão e compreenderão tais produtos;


·       Porque tenho presenciado a anulação e invibilização dos principais sujeitos do processo educacional e seus contextos e a mecanização das práticas educativas. O que parece urgente mesmo é o envio massivo dessas atividades e a exibição de performances. Como se não houvesse uma pandemia nos dizimando...

Afinal, que educação é essa que não considera os sujeitos, os contextos, as dificuldades econômicas, de acesso às tecnologias e de aprendizado mesmo? Não posso comungar, silente e satisfeita, com essa proposição injusta, excludente e anuladora, nem com a robotização da minha prática que me é tão cara. É também por isso que não estou bem, não está nada bem!

Não posso estar bem enquanto apenas 5 dos meus alunos, de uma turma de 45, têm acesso ao grupo do Whatsapp, única forma precariamente possível de contato entre nós, e às poucas atividades e várias indicações de leitura que tenho buscado preparar, meticulosamente, considerando as suas particularidades e não só para satisfazer o ego competidor desse sistema desumanizado. Não posso estar bem, enquanto os outros 40 alunos estão privados de lerem os textos que mando; de ouvirem os podcasts que preparo com o máximo de afeto, imaginando nossas aulas de Literatura e sociedade; de tirarem qualquer dúvida; de comungarem suas ideias; de dizerem como se sentem em meio a toda essa situação angustiante. Não posso estar bem se não consigo mais compartilhar rapadura, em tardes quentes, entre a leitura de um texto e o debate sobre bullying e violência contra a mulher, afinal, aula não é emissão de exercícios em série, execução de comandos ...Ou é??!

Não posso estar bem enquanto a contaminação pelo Covid 19 se alastra rapidamente, destruindo famílias, roubando sonhos e paz, porque além de pais idosos e com doenças preexistentes eu própria estou sendo engolida pelo transtorno de ansiedade e inserida no grupo de risco e posso, a qualquer instante, sucumbir a esse inimigo invisível, afinal nem atleta eu sou. Eu não estou bem e meus/minhas alunos/as, inclusive os 5 com acesso a internet, têm todo o direito de também não estarem, de não conseguirem se concentrar, de sentirem medo, afinal, eles são vidas que também – e muito- importam!

Por fim, gostaria de também deixar esclarecido, antes que a fúria dos seguidores incontestes do sistema se agigante, que não me oponho a buscar alternativas, desde que possíveis a cada contexto específico, sugestivas e não impositivas, justas e equânimes, de minoração dos danos que esse isolamento tem causado. O estalar desse chicote, que nos grita prazos e quantidades, tem resultado efeitos também danosos em nós; basta de tanta desumanização, de invibilização das realidades tão plurais, de exclusão dos sujeitos menos favorecidos, de redução e mecanização da Educação!! Basta!!

Eu não estou bem!
Nada está bem, nem você e essa cegueira.


Pók Ribeiro
05/05/2020.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Aos homens, o poder supremo!



(Arquivo pessoal)


Aos homens, o poder supremo!

A sociedade é altamente condescendente com os erros mais absurdos cometidos pelos homens, ao tempo em que acusa as mulheres, inclusive, daquilo que nunca imaginaram fazer. Imputam-lhe erros, fracassos, culpas até quando são vítimas. A sociedade condena as mulheres pelo que não praticaram, na mesma proporção em que perdoa os homens pelo que muito fizeram.
Não importam as barbáries que digam, os crimes que cometam, os desvios do seu caráter, os homens sempre terão a proteção inconteste de seus pares, enquanto que às mulheres atribuem-se toda sorte de condutas puníveis, mesmo que elas nunca tenham sequer cogitado cometê-las, na vida e na Literatura, inclusive. O pensar da mulher é condenado e, por isso, impõem-lhe a mordaça, o calabouço, a fogueira, o Impeachment.  É assim desde cedo, quando ainda crianças, os meninos têm suas malcriações relevadas, afinal, “menino é assim mesmo, mais levado”, enquanto que às meninas restam as imposições e censuras “Se comporte como uma boa menina!” ou “Isso não é coisa de menina”! Também aos homens é estimulada a camaradagem, o “Clube do Bolinha” e a proteção mútua inabalável, sobretudo, das falhas, enquanto que às meninas instiga-se a rivalidade, a disputa, cujo prêmio, mais uma vez, é a perfeita espécie masculina.  E assim a sociedade segue criando homens que tudo podem e mulheres que nada devem (embora recebam a conta extensiva).
À Eva, exclusivamente, se atribuiu a culpa do pecado original, afinal, se não fosse ela, o pobre Adão não teria comido o fruto proibido e nem teriam sido expulsos daquele paraíso sem inflação crescente ou Coronavírus. Homens usam as metáforas para os entendimentos que lhes convêm. Também não fosse o pecado de Eva, lá no começo, Caim nem teria nascido, nem matado Abel.  De mesma índole, a tal Capitu foi a culpada pela desgraça de Bentinho, segundo essa lógica acusatória de mulheres. Não se questiona o comportamento possessivo, machista de Bentinho, tampouco se aborda a abusividade daquele relacionamento. Bastou ele, dono da narrativa, detentor do poder de dizer, afirmar que olhos dela eram de cigana oblíqua e dissimulada, porque outro homem lhe dissera, mesmo ele não sabendo o que aquilo significava completamente. “ ‘Olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim.” E desde então, grande parte dos/as leitores/as limitam-se a discutir se Capitu traiu ou não Bentinho, tal qual fazem para justificar os inúmeros casos de violência contra a mulher, afinal, segundo essa máxima patriarcal assassina, se o homem bateu ou matou é que ela mereceu.
Homens são ensinados a estarem sempre à frente, na sala de visitas, nos pódios e púlpitos, a não perderem nunca, nem no baba de bola de saco, por isso quando se veem na iminência da derrota, tratam logo de inventar uma desculpa ou criar um ardil para manipular a realidade. Já as mulheres são ensinadas a se acostumarem com a cozinha, os quartinhos do fundo, a assistência, as suplências, porque chorar é algo delas. Mulher tem que ser resiliente, mansa, não reclamar da cólica, do parto, do mercado, do murro, do estupro; já o homem não pode chorar e por isso não se arrisca a sentir dor – isso é coisa de mulher.
Quando cometem sandices, há sempre uma consternação coletiva em torno do perdão desses homens que logo viram “meninos, não sabem o que fazem”, mas às mulheres determina-se sempre que elas “são bem crescidinhas”, mesmo que ainda crianças, vulneráveis, abusadas pelo poder falocêntrico que tudo pode sobre os corpos e as vontades das mulheres. É que a sociedade sempre vai perdoar os homens e condenar as mulheres, por serem vítimas. Seu maior crime é terem nascido mulheres; qualifica-se triplamente se são independentes, feministas, sexualmente livres.
Em situações mais extremas, quando são criminalizados oficialmente, a detenção ou reclusão, em si, não lhe afeta a imagem, porém a condenação mais temida é virar “mulherzinha” na cadeia. Essa prática confirma a condição perversa de ser mulher nessa sociedade. Ser mulher é crime, é pena, é pecado e castigo; é a condenação mais perversa. No campo político, uma casta mais suprema de homens domina e, num ciclo contínuo e perverso, cometem crimes e concedem-se perdão, em nome da manutenção masculina e eurocêntrica do poder. Em maior número, homens brancos e heterossexuais falam qualquer coisa às tribunas, ofendem, agridem, quebram decoro, são machistas, misóginos, racistas, homo/transfóbicos, xenofóbicos e até intelectualmente prejudicados, mas ainda assim continuam exercendo a dominação discursiva e política, afinal, seu maior salvo-conduto é terem nascido homens. E por ser homem, da espécie mais valiosa onde somente os brancos de olhos claros e cabelos fluídos se encaixam - mesmo que mal consigam articular orações simples -, o atual presidente da República tem seus desmandos, discursos preconceituosos e temerários, ataques à ordem e à saúde pública, anistiados pela legião de outros seres supremos – homens, e validados por essa sociedade que perdoa até os mais vis dessa espécie. 
Se fosse ele homem nordestino, apreciador de aguardente e rapadura, destoante do padrão seleto, talvez lhe recaísse algum peso, um tanto mais de impedimentos. Porém, diferentemente do tratamento absolto assentido ao inapropriado presidente, a ex-presidenta Dilma sofreu um golpe tramado, praticado e legitimado por homens de conduta questionável, mesmo que não se comprovasse deslize algum, simplesmente por ser mulher; daquelas que não cedem, não recuam e não aceitam a rédea de macho algum. Dilma foi condenada, injustamente, por ser mulher, ousando ocupar espaço de homem, flexionando substantivo até então privativo ao homem, subvertendo a norma sexista do corpo e da veste adequada ao deleite masculino. Dilma se bastava – esse fora o maior crime.

Aos homens, o perdão; outorga-lhes a sociedade.
Eu não sou Deus/a, e ele/ela que me perdoe.



Pók Ribeiro
Poeta, professora, escritora, gente que sente - e muito.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Elegia ao Tempo

Pók Ribeiro.
 Foto enviada ao Tempo em 26/12/19



      O tempo, que é (re)começo em si, se finda. Giro aferrado em volta de si mesmo que ultima ciclos, aqui nesse plano e reinicia n'outro. É a ciranda do tempo, é o tempo da dança, é a dor que balança ou nos arranca da festa pra na outra bailar. É o tempo e a vida, e é essa a certeza que insistimos, tontos, em não abraçar.
     De tontar e não acompanhar o passo, vão se perdendo os abraços no vão das horas que separam os olhos. Se perdem as mãos e a voz no esticar dos espaços. E não é puxa que adoça e lambuza; é distância que amarga, primeiro os olhos e depois bota a perder as palavras que já nem sabem para onde vão. Mas quando a gente tonta mais que o ritmo e escorrega desse eixo que enjaula, os cheiros e sabores da memória nos acordam, mesmo que em espaços remotos, e,  a voz reaprende a dizer saudade. É que a memória, de tanto teimar, vai tirando a poeira dos retratos, trocando as pilhas do velho rádio e acordando as vozes e seus (en)cantos. A memória arremata os laços, acende os afetos e faz sorrisos onde antes era silêncio.
    Mas o Tempo, esse de quem falo, também tem marcas, cascas de feridas não curadas, que resistem ao velame e ao pinhão. E mesmo em úlcera,o Tempo não se afasta das memórias, ao contrário, delas faz  sustança e se agarra ao fio sensível de viver. O Tempo sente fome de manuê e farofa de ovo, ignorando todas as impossibilidades físicas; de tanto padecer, o Tempo transcende e já não se limita à matéria. O Tempo anda na velha monark verde de coxim vermelho, arrastando os pedregulhos da ladeira, rompendo as cortinas do escuro e o temor de almas penadas, porque para aquele Tempo, passado e presente são ilusões de perversos.

    O Tempo padeceu de dores, entregou seu corpo frágil e todo escrito de histórias tantas, ao alvedrio das descobertas de cura. O Tempo resistiu, trocou suas vestes, despiu-se dos costumes e obrigações e foi viver na tênue linha da resistência que une estes mundos pelos quais transitamos, em busca de evolução. E o Tempo equilibrou-se bem. Reconheceu suas paisagens, relembrou de sabores, riu e chorou de saudades. O Tempo viveu e eu quis tanto que vivesse mais e sem dor. E eu quis tanto ver o Tempo e agradecer de perto pelas quedas de bicicleta, pela parceria. Eu quis tanto dizer de perto tudo aquilo que escrevi e o Tempo leu e sorriu que eu sei, porque o Tempo, mesmo com dor, sorria, gostava de poesia e era contra os nazifascistas que se multiplicam. O Tempo teve nome de presidente ditador escolhido no ano que começou meu tempo, mas ele desejava tanto igualdade e justiça social para além dos escritos, talvez para reparar as ausências e faltas de que bem sabia.

    Hoje, o Tempo transmuta-se em luz e paz... Vai sereno pro outro plano, pedalando suave sua velha monark, assoviando qualquer cantiga que aprendeu do rádio, tão feliz como se fosse a um baba no fim de tarde, lá no campo ou quem sabe como se fosse caçar uma cupira, lá nas umburanas do Pocinho. Foi-se o Tempo e dessa vez sem ler minhas histórias sobre estradas e caminhantes, sem ver minhas fotografias e deixando uma conversa de aplicativo sem resposta...

   Vai-se o Tempo pros afagos que tanto esperou e eu fico, até que minha estrada passe, guardando as memórias de pés e visagens, de vozes e asas, no escuro - daquele todo em veludo que logo passa e acorda com as juritis no canto da cerca.Vai, meu Tempo irmão, a bicicleta não precisa mesmo de freio não...


[ Não quero mais escrever para os tempos que voam]

Pók Ribeiro


Arquivo Familiar - De um aniversário aí dos anos 80.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Amontoados de sentir muito

    
Pók Ribeiro

   Depois de perdidas as chaves de casa e despencadas as fotografias que escreviam suas histórias na parede, não tardou para que as palavras fossem se entocando nos cantos escuros como sempre fizera o gato azul, almejando uma adoção definitiva. Elas ensaiavam um respirar ao sol, mas logo recuavam e encolhiam-se, como se ainda lhes faltasse seiva.

   Também os versos oscilavam nesse purgatório de sentir e sucumbir, quarando na cerca velha de prender lembranças. Versos tão franzinos, de perninhas acinzentadas e rabiscadas de gravetos. Versos de brisa em caminhos de pedra. Versos de tempo em espelhos grisalhos, empurrando as janelas pra vida passar pro lado de lá. É...,  perder as chaves de casa devia ter lá um recado sobre portas fechadas, enviado do além. Só podia. 


   No mais, tudo cheirava a paradoxo renovado na segunda-feira. A cabra branca ali, esperando nascer os cabritos com os quais corri no passado, enquanto o milho cozido na panela esperava a barriga do menino para germinar. E tudo era tanto, de um tanto que nunca fora e nem será, porque o instante se bastava - e basta -  em si; se refestela no respirar ou no morder banguelo do menino. E tudo era mais, porque nunca fora menos, nem é excesso e os olhos de contemplação à distância já foram os olhos de sentir e revirar. 

    E, enquanto me rendia à magia mansa do menino, aquela canção composta para me nascer e que me levará pro outro lado, quando a janela bater de vez, ia fazendo mais sentido ao meu sentir tão extremo e tão descuidado. Sentir de fazer perder chaves e amocambar palavras. Sentir de se perder para o faro do gato amarelo encontrar.

Eu vi um menino correndo
eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino." (VELOSO, 1978)


   Eu vi o menino tecendo os caminhos do tempo ainda não posto, ensaiando cantigas de desanuviar sentidos ressaqueados desse excesso de ser tanto, de sentir muito, magoando esse torcicolo constante de olhar pras lembranças como quem encena um filme espetaculoso de si mesmo. Eu vi o menino acalmando um tempo que ainda não veio, porque já foi, mas ainda está aqui em mim, nessa música que se repete pela nona vez, nessa parede que ecoa meus suspiros, porque sabe que as palavras ainda estão em repouso.


   Eu vi o menino que a mulher, aquela outra que também sou eu e que me é,  preparou para a luta, pros meus dengos e pros ciúmes sonoros do gato que me vigia, bem de perto, bem de dentro, porque ele também sente. E muito.


Pók Ribeiro