quinta-feira, 19 de março de 2020

Aos homens, o poder supremo!



(Arquivo pessoal)


Aos homens, o poder supremo!

A sociedade é altamente condescendente com os erros mais absurdos cometidos pelos homens, ao tempo em que acusa as mulheres, inclusive, daquilo que nunca imaginaram fazer. Imputam-lhe erros, fracassos, culpas até quando são vítimas. A sociedade condena as mulheres pelo que não praticaram, na mesma proporção em que perdoa os homens pelo que muito fizeram.
Não importam as barbáries que digam, os crimes que cometam, os desvios do seu caráter, os homens sempre terão a proteção inconteste de seus pares, enquanto que às mulheres atribuem-se toda sorte de condutas puníveis, mesmo que elas nunca tenham sequer cogitado cometê-las, na vida e na Literatura, inclusive. O pensar da mulher é condenado e, por isso, impõem-lhe a mordaça, o calabouço, a fogueira, o Impeachment.  É assim desde cedo, quando ainda crianças, os meninos têm suas malcriações relevadas, afinal, “menino é assim mesmo, mais levado”, enquanto que às meninas restam as imposições e censuras “Se comporte como uma boa menina!” ou “Isso não é coisa de menina”! Também aos homens é estimulada a camaradagem, o “Clube do Bolinha” e a proteção mútua inabalável, sobretudo, das falhas, enquanto que às meninas instiga-se a rivalidade, a disputa, cujo prêmio, mais uma vez, é a perfeita espécie masculina.  E assim a sociedade segue criando homens que tudo podem e mulheres que nada devem (embora recebam a conta extensiva).
À Eva, exclusivamente, se atribuiu a culpa do pecado original, afinal, se não fosse ela, o pobre Adão não teria comido o fruto proibido e nem teriam sido expulsos daquele paraíso sem inflação crescente ou Coronavírus. Homens usam as metáforas para os entendimentos que lhes convêm. Também não fosse o pecado de Eva, lá no começo, Caim nem teria nascido, nem matado Abel.  De mesma índole, a tal Capitu foi a culpada pela desgraça de Bentinho, segundo essa lógica acusatória de mulheres. Não se questiona o comportamento possessivo, machista de Bentinho, tampouco se aborda a abusividade daquele relacionamento. Bastou ele, dono da narrativa, detentor do poder de dizer, afirmar que olhos dela eram de cigana oblíqua e dissimulada, porque outro homem lhe dissera, mesmo ele não sabendo o que aquilo significava completamente. “ ‘Olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim.” E desde então, grande parte dos/as leitores/as limitam-se a discutir se Capitu traiu ou não Bentinho, tal qual fazem para justificar os inúmeros casos de violência contra a mulher, afinal, segundo essa máxima patriarcal assassina, se o homem bateu ou matou é que ela mereceu.
Homens são ensinados a estarem sempre à frente, na sala de visitas, nos pódios e púlpitos, a não perderem nunca, nem no baba de bola de saco, por isso quando se veem na iminência da derrota, tratam logo de inventar uma desculpa ou criar um ardil para manipular a realidade. Já as mulheres são ensinadas a se acostumarem com a cozinha, os quartinhos do fundo, a assistência, as suplências, porque chorar é algo delas. Mulher tem que ser resiliente, mansa, não reclamar da cólica, do parto, do mercado, do murro, do estupro; já o homem não pode chorar e por isso não se arrisca a sentir dor – isso é coisa de mulher.
Quando cometem sandices, há sempre uma consternação coletiva em torno do perdão desses homens que logo viram “meninos, não sabem o que fazem”, mas às mulheres determina-se sempre que elas “são bem crescidinhas”, mesmo que ainda crianças, vulneráveis, abusadas pelo poder falocêntrico que tudo pode sobre os corpos e as vontades das mulheres. É que a sociedade sempre vai perdoar os homens e condenar as mulheres, por serem vítimas. Seu maior crime é terem nascido mulheres; qualifica-se triplamente se são independentes, feministas, sexualmente livres.
Em situações mais extremas, quando são criminalizados oficialmente, a detenção ou reclusão, em si, não lhe afeta a imagem, porém a condenação mais temida é virar “mulherzinha” na cadeia. Essa prática confirma a condição perversa de ser mulher nessa sociedade. Ser mulher é crime, é pena, é pecado e castigo; é a condenação mais perversa. No campo político, uma casta mais suprema de homens domina e, num ciclo contínuo e perverso, cometem crimes e concedem-se perdão, em nome da manutenção masculina e eurocêntrica do poder. Em maior número, homens brancos e heterossexuais falam qualquer coisa às tribunas, ofendem, agridem, quebram decoro, são machistas, misóginos, racistas, homo/transfóbicos, xenofóbicos e até intelectualmente prejudicados, mas ainda assim continuam exercendo a dominação discursiva e política, afinal, seu maior salvo-conduto é terem nascido homens. E por ser homem, da espécie mais valiosa onde somente os brancos de olhos claros e cabelos fluídos se encaixam - mesmo que mal consigam articular orações simples -, o atual presidente da República tem seus desmandos, discursos preconceituosos e temerários, ataques à ordem e à saúde pública, anistiados pela legião de outros seres supremos – homens, e validados por essa sociedade que perdoa até os mais vis dessa espécie. 
Se fosse ele homem nordestino, apreciador de aguardente e rapadura, destoante do padrão seleto, talvez lhe recaísse algum peso, um tanto mais de impedimentos. Porém, diferentemente do tratamento absolto assentido ao inapropriado presidente, a ex-presidenta Dilma sofreu um golpe tramado, praticado e legitimado por homens de conduta questionável, mesmo que não se comprovasse deslize algum, simplesmente por ser mulher; daquelas que não cedem, não recuam e não aceitam a rédea de macho algum. Dilma foi condenada, injustamente, por ser mulher, ousando ocupar espaço de homem, flexionando substantivo até então privativo ao homem, subvertendo a norma sexista do corpo e da veste adequada ao deleite masculino. Dilma se bastava – esse fora o maior crime.

Aos homens, o perdão; outorga-lhes a sociedade.
Eu não sou Deus/a, e ele/ela que me perdoe.



Pók Ribeiro
Poeta, professora, escritora, gente que sente - e muito.

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