quinta-feira, 14 de maio de 2020

Carta de um resguardado

Registro Pessoal


No varal estendido entre a cabeça atordoada e a nuvem pesada, em tons de chumbo, fé e medos balançam ao vento das plurinformações.  O medo se aperta no fio para caber a inconsequência crescente. A nuvem passa.

Nas ruas, o invisível passeia livre e feliz pelos espaços que tem conquistado, pelos corpos em que tem se hospedado e as viagens que tem feito sem pagar passagem nem taxa de embarque, enquanto a multidão o desafia, protegida pela ignorância e pela ideia de superioridade às vidas que se perdem. Vidas dos mais vulneráveis.

As pessoas correm, pedalam, tomam mais um gole, orgulhosas de seu vigor de atleta e de terem furado o isolamento, burlado as recomendações da OMS e autoridades locais. Elas ostentam, às gargalhadas, o estandarte da sua idiotia perversa e mortal. Enquanto isso, os que precisam salvar vidas e todos os outros, nós, que nos esforçamos para convivermos em paz, com as conflituosas vozes de nossa cabeça, os tantos eus tão enjoadinhos e os eus dos outros que a gente, também, acaba enjoando; nós e esse senso de coletividade que ainda alimentamos todas as manhãs, vamos nos sentindo mais bobos, porém sem culpas ou remorsos.

Ademais, os sistemas sentem-se mais corpulentos para oprimir, excluir, afinal, amofinado e picado pelo medo o povo é mais facilmente tangido. É assim que os mandarins da educação determinam que professores/as devem produzir aulas e materiais on-line, para seus alunos/as assistirem e realizarem, lá de suas casas, naqueles espaços desconhecidos, mesmo que nelas não se tenha acesso à internet, computador, celular. Mesmo que na casa tudo falte, até alimento. Afinal, mais importante é alimentar o tal sistema de atividades, mesmo que elas nunca sejam visualizadas; determinam eles, em sintagmas preposicionais repletos de elipses e oximoros, que nunca serão lidos ou interpretados de forma socialmente crítica. Enquanto isso, professores reproduzem comandos tal qual a orquestra do Titanic, tocando para as minorias que têm poder e colete de sobrevivência, visando estampar os posts da “Maratona de Se aparecer”; outros, seguram, angustiados, os instrumentos que nunca tocarão, pois sabem que significativa parte do público teima para sobreviver lá no porão. São os excluídos que nada escutam. Ninguém lhes escuta, igualmente.

Enquanto isso, a Arte, Senhora já tão castigada pelo conservadorismo espumando de raiva, segue sendo o antídoto necessário a luzir ante a escuridão do egocentrismo e das opressões que se proliferam junto ao vírus. E a Arte vai abrindo as janelas para o vento da esperança e arrebentando as tramelas da alma para o sentir mais puro. Quando a distância se faz urgente e solidão e pavor se alojam na mente, é a música que espanta o temor; é a Poesia que denga e acalanta os sentidos; é o teatro, o movimento dos corpos, o encontro de imagem, som e enredo que saltam das telas e vão ocupar a sala vazia, o quarto em resguardo.

Nas Universidades e laboratórios tantos, todos/as aqueles/as perseguidos/as pelo obscurantismo que governa – estupidamente – o país, dedicam-se obstinados/as à busca de medicações, à criação de equipamentos que possam abrandar os males causados por esse invisível que censura abraços e beijos e vai botando longe dos nossos olhos, os olhos que amamos perto.

O Universo tem nos falado, tão logo o cordão umbilical se rompe, mas nossas limitações mais elementares vão confundindo as vozes e, chega um tempo em que curvados, vemos apenas o reflexo adornado de nossa existência e aquelas verdades absolutas de tudo que não é, mas pensamos ser. Um tanto de retóricas guardadas em arquivos inúteis que dizem mais sobre nossas fraquezas que sobre eloquências. 

É o tempo de depuração que impera. É a voz maior do Universo que nos ordena o cantinho do pensamento. É a mãe terra arrependida, talvez, de não nos ter abortado a tempo de salvar-se. Sejamos pois, sementes reaproveitadas e conscientes das grandezas mais apropriadas para a Poesia: o amor- próximo e distante-, o silêncio regenerador, a liberdade intangível de sermos luz e o dever irrenunciável de cuidarmos uns dos outros, em comunhão com a grande mãe que tão logo devorará nossa matéria. 

Voemos!

Pók Ribeiro

                                             (escrito entre 04/04 e 27/04/2020)


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