domingo, 21 de novembro de 2021

Nossa cara de ENEM na vida!



     Desde que foi criado, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) passou por transformações significativas, sempre buscando maior democratização do ensino superior e inclusão de mais jovens nas Universidades. É evidente que algumas polêmicas permearam o início do exame, principalmente porque livre acesso ao ensino superior público ainda era algo distante e altamente restrito aos donos de tudo, mas também pelo valor da taxa de inscrição e pelas dificuldades inerentes a qualquer implementação que vise transformações. Neste primeiro momento, o ENEM ainda parecia algo bem distante e complexo para estudantes que, como eu, vinham da escola pública de cidades interioranas do Sertão nordestino. Eu ainda não tinha essa percepção clara das várias camadas de exclusão e invisibilidade, mas já sentia um incômodo enorme dessa concepção elitista e cristã de que Deus abençoava os filhos dos ricos com aprovações nas universidades das capitais, mas aos filhos e filhas dos pobres, não.

      Já mais consolidado, em 2001, o MEC passou a conceder isenção da taxa de inscrição a estudantes que atendessem alguns pré-requisitos básicos de renda e histórico escolar em rede pública, o que garantiu maior participação dos jovens de baixa renda, visto que o valor alto da inscrição era um dos impedimentos iniciais. Garantir isenção foi mais uma abertura para aqueles/as que seguiam silenciados e excluídos dos seus direitos mais fundamentais, entre eles o garantido no Art. 205 da Constituição Federal:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.


        Esse fora um ganho importante, mas ainda faltava muito, pois nem todas as Universidades haviam aderido ao exame como forma de entrada de seus estudantes e, principalmente, porque se escancarava a desiguldade territorial nesse país. Grandes cidades do Norte e Nordeste não tinham Faculdades,  Universidades, evidenciando a negligência dos governos com o povo nortista e nordestino, desde a República do Café com Leite. Desse modo, mesmo que o/a estudante conseguisse aprovação, ele precisaria de uma rede de apoio bastante efetiva para mudar-se para a capital, o que nem sempre ocorria. Quantos amigos, conhecidos não abandonaram seus sonhos por não terem onde morar e como se alimentar na capital para que pudesse estudar? 

     Depois de algumas outras evoluções, como a criação do Prouni em 2004, que garantia a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais, em instituições privadas, aos participantes, o ENEM ganha não só um novo formato, em 2009, mas também a ampliação de unidades de ensino superior, inclusive os Institutos Federais que se espalharam em espaços até então desassistidos, garantindo maior acessibilidade e inclusão efetiva desses jovens que não precisariam mais abandonar suas raízes, seu povo, sua cultura para conseguir uma formação superior, além da criação do FIES em 2010. Não podemos omitir que várias falhas graves ocorreram nesse percurso, a exemplo do vazamento  e cancelamento de provas, como ocorrido em 2009, porém nada tão obscuro e entristecedor como o que estamos a presenciar neste ano de 2021.

     Mesmo com todos os impedimentos, exclusões acentuadas com a pandemia, a baixa participação, sobretudo de estudantes de baixa renda desassistidos e ignorados pelo sistema, inclusive das redes estaduais que só se preocupam com dados, com números de inscritos, mas não criam nenhuma estratégia prática e efetiva para garantir que esses estudantes cheguem aos locais de prova em segurança, somadas à ingerência desse (des)governo, o ENEM de 2020 não trouxe tanta indignação como a edição deste ano, marcada pelo desligamento de servidores do INEP e pelas denúncias de interferências na escolha das questões das provas.

     Não bastasse toda a tensão inerente ao momento, as dificuldades de aprendizagem do ensino remoto e híbrido, as dificuldades econômicas que levaram os estudantes a se dedicarem ao trabalho para garantirem a sua sobrevivência e de suas famílias, em decorrência da crise econômica que nos engole e atinge mais em cheio jovens estudantes da escola pública, o (des)presidente afirma que o ENEM teria "a cara do governo". Nada mais feio, tosco, repugnante, do que sua cara, seus discursos e ações, mas eu me questiono, o que seria uma prova com a cara do governo?

    Teria a prova narrativas de fome, miséria, diários de um genocídio em curso, retratos de desmandos, campanhas publicitárias de negacionismo e preconceito? Essa prova traria análises da área da terra plana, o volume do caos, os decibéis das Fake News, os índices crescentes da fome? A mobilidade social da classe média/baixa para a linha da extrema pobreza? Traria a prova, cartas de garimpeiros e agropecuaristas dizimadores do povo indígena, narrando os feitos das suas incursões na Amazônia úmida que não cede ao fogo? Ou quem sabe, teria estatísticas e históricos de atletas que não se renderam à gripezinha que já matou mais de 613 mil pessoas e deixou cerca de 194.200 órfãos, crianças e adolescentes que perderam os pais ou avós que lhes criavam. (?)

   Uma prova com a cara desse (des)governo assusta, censura, persegue, mata... E o ENEM, desde o seu nascedouro, é um exame que acolhe, inclui, abre caminhos de possibilidades, garantindo a jovens pobres, periféricos, das áreas rurais, outras perspectivas de vida para além dos determinismos e, por isso, não deve e nem pode ter a cara de tiranos.  De cá, fico torcendo para que minhas (ex) alunas e alunos consigam um bom resultado e façam uma nova história em que suas vozes, caras e lutas sejam valorizadas e respeitadas. Também torço para que esses tempos sombrios se findem e a gente possa, enfim, respirar com mais liberdade e possibilidades de transformação, do litoral ao Sertão, do chão de barro ao cimento suspenso, porque nosso sonho não se cala!

      Demos ao Brasil a nossa cara plural, diversa e de luta!!!


   As fotos que integram esse meu desabafo foram feitas por alunas minhas (Júlia do Vale e Edilene Morais), enquanto esperavam os portões abrir, neste 1º dia de prova. É a elas e todas/todos as/os outras/os que dedico a minha luta por uma Educação Libertadora!!!


Pók Ribeiro
professora, poeta, gente que sente (e diz) - muito!









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