segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Amontoados de sentir muito

    
Pók Ribeiro

   Depois de perdidas as chaves de casa e despencadas as fotografias que escreviam suas histórias na parede, não tardou para que as palavras fossem se entocando nos cantos escuros como sempre fizera o gato azul, almejando uma adoção definitiva. Elas ensaiavam um respirar ao sol, mas logo recuavam e encolhiam-se, como se ainda lhes faltasse seiva.

   Também os versos oscilavam nesse purgatório de sentir e sucumbir, quarando na cerca velha de prender lembranças. Versos tão franzinos, de perninhas acinzentadas e rabiscadas de gravetos. Versos de brisa em caminhos de pedra. Versos de tempo em espelhos grisalhos, empurrando as janelas pra vida passar pro lado de lá. É...,  perder as chaves de casa devia ter lá um recado sobre portas fechadas, enviado do além. Só podia. 


   No mais, tudo cheirava a paradoxo renovado na segunda-feira. A cabra branca ali, esperando nascer os cabritos com os quais corri no passado, enquanto o milho cozido na panela esperava a barriga do menino para germinar. E tudo era tanto, de um tanto que nunca fora e nem será, porque o instante se bastava - e basta -  em si; se refestela no respirar ou no morder banguelo do menino. E tudo era mais, porque nunca fora menos, nem é excesso e os olhos de contemplação à distância já foram os olhos de sentir e revirar. 

    E, enquanto me rendia à magia mansa do menino, aquela canção composta para me nascer e que me levará pro outro lado, quando a janela bater de vez, ia fazendo mais sentido ao meu sentir tão extremo e tão descuidado. Sentir de fazer perder chaves e amocambar palavras. Sentir de se perder para o faro do gato amarelo encontrar.

Eu vi um menino correndo
eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino." (VELOSO, 1978)


   Eu vi o menino tecendo os caminhos do tempo ainda não posto, ensaiando cantigas de desanuviar sentidos ressaqueados desse excesso de ser tanto, de sentir muito, magoando esse torcicolo constante de olhar pras lembranças como quem encena um filme espetaculoso de si mesmo. Eu vi o menino acalmando um tempo que ainda não veio, porque já foi, mas ainda está aqui em mim, nessa música que se repete pela nona vez, nessa parede que ecoa meus suspiros, porque sabe que as palavras ainda estão em repouso.


   Eu vi o menino que a mulher, aquela outra que também sou eu e que me é,  preparou para a luta, pros meus dengos e pros ciúmes sonoros do gato que me vigia, bem de perto, bem de dentro, porque ele também sente. E muito.


Pók Ribeiro

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