domingo, 2 de fevereiro de 2020

Elegia ao Tempo

Pók Ribeiro.
 Foto enviada ao Tempo em 26/12/19



      O tempo, que é (re)começo em si, se finda. Giro aferrado em volta de si mesmo que ultima ciclos, aqui nesse plano e reinicia n'outro. É a ciranda do tempo, é o tempo da dança, é a dor que balança ou nos arranca da festa pra na outra bailar. É o tempo e a vida, e é essa a certeza que insistimos, tontos, em não abraçar.
     De tontar e não acompanhar o passo, vão se perdendo os abraços no vão das horas que separam os olhos. Se perdem as mãos e a voz no esticar dos espaços. E não é puxa que adoça e lambuza; é distância que amarga, primeiro os olhos e depois bota a perder as palavras que já nem sabem para onde vão. Mas quando a gente tonta mais que o ritmo e escorrega desse eixo que enjaula, os cheiros e sabores da memória nos acordam, mesmo que em espaços remotos, e,  a voz reaprende a dizer saudade. É que a memória, de tanto teimar, vai tirando a poeira dos retratos, trocando as pilhas do velho rádio e acordando as vozes e seus (en)cantos. A memória arremata os laços, acende os afetos e faz sorrisos onde antes era silêncio.
    Mas o Tempo, esse de quem falo, também tem marcas, cascas de feridas não curadas, que resistem ao velame e ao pinhão. E mesmo em úlcera,o Tempo não se afasta das memórias, ao contrário, delas faz  sustança e se agarra ao fio sensível de viver. O Tempo sente fome de manuê e farofa de ovo, ignorando todas as impossibilidades físicas; de tanto padecer, o Tempo transcende e já não se limita à matéria. O Tempo anda na velha monark verde de coxim vermelho, arrastando os pedregulhos da ladeira, rompendo as cortinas do escuro e o temor de almas penadas, porque para aquele Tempo, passado e presente são ilusões de perversos.

    O Tempo padeceu de dores, entregou seu corpo frágil e todo escrito de histórias tantas, ao alvedrio das descobertas de cura. O Tempo resistiu, trocou suas vestes, despiu-se dos costumes e obrigações e foi viver na tênue linha da resistência que une estes mundos pelos quais transitamos, em busca de evolução. E o Tempo equilibrou-se bem. Reconheceu suas paisagens, relembrou de sabores, riu e chorou de saudades. O Tempo viveu e eu quis tanto que vivesse mais e sem dor. E eu quis tanto ver o Tempo e agradecer de perto pelas quedas de bicicleta, pela parceria. Eu quis tanto dizer de perto tudo aquilo que escrevi e o Tempo leu e sorriu que eu sei, porque o Tempo, mesmo com dor, sorria, gostava de poesia e era contra os nazifascistas que se multiplicam. O Tempo teve nome de presidente ditador escolhido no ano que começou meu tempo, mas ele desejava tanto igualdade e justiça social para além dos escritos, talvez para reparar as ausências e faltas de que bem sabia.

    Hoje, o Tempo transmuta-se em luz e paz... Vai sereno pro outro plano, pedalando suave sua velha monark, assoviando qualquer cantiga que aprendeu do rádio, tão feliz como se fosse a um baba no fim de tarde, lá no campo ou quem sabe como se fosse caçar uma cupira, lá nas umburanas do Pocinho. Foi-se o Tempo e dessa vez sem ler minhas histórias sobre estradas e caminhantes, sem ver minhas fotografias e deixando uma conversa de aplicativo sem resposta...

   Vai-se o Tempo pros afagos que tanto esperou e eu fico, até que minha estrada passe, guardando as memórias de pés e visagens, de vozes e asas, no escuro - daquele todo em veludo que logo passa e acorda com as juritis no canto da cerca.Vai, meu Tempo irmão, a bicicleta não precisa mesmo de freio não...


[ Não quero mais escrever para os tempos que voam]

Pók Ribeiro


Arquivo Familiar - De um aniversário aí dos anos 80.


Nenhum comentário:

Postar um comentário