domingo, 29 de dezembro de 2019

Escrita da estrada

(Fotografia: Pók Ribeiro)



Na estrada em chão batido, por onde passa o tempo, caminham também os sonhos, as memórias alimentadas em cada verão, as amargas vivências no caos, a letargia aguda e até essa a cegueira dos olhos que não se veem.

Em suas margens, afastadas do caminhar livre ou determinado, repousam as pedras e galhos retorcidos, dedicados à observação em modo contínuo e murmurando ao vento morno, dizendo do tanto mais que sabem de caminhos que os viajantes. Marginais olhares que captam e escrevem outras histórias do tempo.

Enquanto segue, arrastando os frangalhos das horas que pesam, o tempo deixa mais que marcas no chão dessa estrada. Vai ficando a poeira engrenhada nos galhos violados, as marcas abertas nos veios da terra usurpada e um medo granuloso que irrita olhos teimosos,  até sangrar.

Na beira da estrada, pedaços de histórias vão sendo escritas para que os redemoinhos de meio dia levem por aí, trespassando em dança as moitas de palmatória que lá se fincaram, desde que havia mais caminhos e caminheiros. Quem conduz a mão que rabisca esse enredo e quem ainda lerá cada trecho ressoante que se espalha sem volta? 

O trotar derradeiro das horas já pode ser ouvido em meio à escuridão dessa meia noite inteira. E lá vem mais tempo, e já se escuta o vento arengando planos para as árvores altas. São segredos cabeludos e roteiros de fuga, itinerários secretos de sobrevivência ao caos, à estupidez mórbida, ao silêncio moribundo que carcome as línguas e impingi as ideias desse comodismo infeccioso. São mais que palavras e roteiros, é a poesia mais intensa da vida que nos será revelada a cada novo dia, um de cada vez, para que possamos sorver a magia de cada verso-vida impregnado de alma e de todos os outros rabiscos que as estradas rascunharam nela.

Lá vem o tempo, bem ali na curva, esperando uma escrita que não se cala, não se molda, nem espera o sol aquietar. É a escrita da estrada, que martela e faísca com Xangô, que se faz ao caminhar pro lado que não vai o gado conservador e de bem.

Pók Ribeiro





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