sábado, 24 de julho de 2010

CRÔNICA



Diálogos com a consciência

O sentido da existência humana suplanta qualquer tentativa de explicação, seja ela científica, religiosa ou filosófica. Existir é um ato extremamente íntimo e coletivo simultaneamente. É uma obra que depende do eu e de todas as outras pessoas do discurso: tu, ele, ela,vós e eles.

Foi numa terça-feira comum, azulada como eram até então todas as outras, que descobri que existir é algo infinitamente complicado, não que eu tenha descoberto por vontade própria, fui persuadida a isso.

Funcionária pública assalariada. Livro de ponto, entrada e saída. Salário tristonho na última terça do mês. Esse era o dia; aí começa minha via crucis.

Na agência bancária uma fila sem pernas. Depois de horas fingindo-me árvore, veio a primeira informação: "você não existe". Indo ao setor burocrático (ir)responsável pela minha suposta existência, ouço uma voz mecanizada, programada para não dizer coisa alguma:
- Você?! Você existe?! Você não existe!
De súbito parei:

-An?! Como assim?! Eu existo, olha eu aqui! Documentos.Assinaturas. Ei, moça...psiu...
- ...
- ...
Nos dias que seguiram continuei sem existir. Não sou um número como querem meus senhores. Não tenho um registro de série, código de barras... sequer os números da besta estão tatuados em minha testa cravejada de rugas e espinhas.


Belo conflito existencial. Voce, ilustre leitor, deve estar cismando: " Que me interessam os seus problemas? Já tenho os meus". Sou forçada a concordar convosco...

É que a partir dali não bastava a minha auto-existência, essa minha consciência tagarela. Era imperioso que os outros autorizassem a minha existência. O meu existir necessitava de ofícios, requerimentos, carimbos...

Nunca a gênese divina fora tão burocratizada, e eu, já em dúvida passei a perceber que de fato eu não existia; nada existia ... Nem mesmo esse verbo, em seu pretérito imperfeito, amenizava a minha agonia.

Outras terças, agora em cinza, passaram até que finalmente o telefone tocou e do outro lado alguém perguntou por mim. Sim, mas quem sou eu? Lá na agência bancária uma máquina nada simpática confirmou que eu existia. No caminho de casa um bebê, ainda banguelo, me sorriu... Eu começava a existir. Dentro de mim uma força estranha pulsava, desejo de gritar toda essa minha existência amordaçada. Contentei-me com um picolé de umbu.


Ah! No setor burocrático não há parecer, resposta, portaria... Não importa! Cá dentro sei que existo!


Erika Jane Ribeiro

6 comentários:

  1. pura inpiração , parabéns muito bom.

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  2. Sempre inovando seus pensamentos , e nos dando a oportunidade de imaginarmos com vc esse mundo diferente .

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  3. ri alto, pessoa inexistente para o sistema. Nem as máquinas impedem o inicio de um belo conflito existencial

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  4. ADOREEEEI, DE VERDADEE TÁ MUITO FODA ! PARABÉNS MINHA GATA QUE DEUS TE ILUMINE SEMPRE.

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  5. kkkk...coisas que "só acontecem" por aqui!
    A ineficiência latente...
    Parabéns pelo texto. ;)
    Josy

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