quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Bicho-gente

Graussá [bicho que limpa o lixo que o humano joga na praia ]- Ponta da Tulha - Ilhéus/BA



Deu por ruminar cada palavra engolida naqueles dias de alma longe. Coisa de bicho que num silêncio necessário – e doído - não sabe tragar o bolo de uma só vez. Bicho que precisa fragmentar as partículas de seu ser, vagarosamente, despedaçar e sentir entre os dentes e língua o amargor ou o doce dos contatos. Bicho que prefere plantas brabas e sabe que respirar também dói.

Ritual feito, nunca se findara. Sempre sobrava um amargo, um fiapo entre os dentes, aquela massa amarga no canto do siso e daí para uma nova/velha remastigação era um salto – para o caos. Palavra engolida e ruminada pesava demais. Por mais que pelejasse para expulsá-las, sempre ficava um resto. O resto dormido, juntado ao silêncio do outro dia – e do outro e do outro – azedava tudo.

Compreendeu, por fim, que tinha carências múltiplas. Não dependia de ninguém, por certo; também não lhe faltava nada dessas tais materialidades. Carecia dela mesma, da alegria ingênua que já lhe habitara, da loucura ébria de ser bicho de asa. Bicho que voa leve. Bicho que canta a qualquer hora. Da sina de bicho ser, não fugiria. Ninguém doma sua natureza.

Ainda assim faltavam os ventos, dos bons e leves. Faltavam as cores dos olhos e dentes. Cores de gente também leve, mais pássaro que gente-bicho. Faltava a dança, o corpo bobo, fluído, embriagado de paz.


A ventania de Iansã trará e amanhã, bem cedinho, nada mais faltará!


Pók Ribeiro

4 comentários:

  1. Brilhante!!

    "...Carecia dela mesma, da alegria ingênua que já lhe habitara, da loucura ébria de ser bicho de asa. Bicho que voa leve. Bicho que canta a qualquer hora..."

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  2. Belo! Bravo! "Carecia dela mesma, da alegria ingênua "

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  3. "Faltava a dança, o corpo bobo, fluído, embriagado de paz".

    Maravilhoso

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